Herança patrimonial no coração de Fortaleza
Com diversidades urbanas, turismo e lazer, o berço central da Capital do Ceará carrega a mais bela história cultivada de memória, preservação e identidade cultural, na formosa e arquitetônica Praça do Ferreira
Ingrid Coelho
Ela é centenária, recebe todos os dias passos corridos e olhares curiosos. De perto ou de longe, é um dos lugares mais icônicos de Fortaleza. A Praça do Ferreira é mais que um bom lugar para se sentar e jogar conversa fora. É lugar de acolhimento. Com sentimento de identificação, passado de geração para geração por cada história de pessoas comuns ou importantes para a cidade, é que se fez desse patrimônio, o mais belo significado do que é imaterial: as pessoas dão vida à praça.
Tudo começou em meados do século XIX, quando naquele espaço era localizado uma feira bem movimentada, que ficou conhecida por “Feira Nova”, atraindo a construção de casas e estabelecimentos em seu entorno. Em 1871, o carioca Antônio Rodrigues Ferreira de Macedo, conhecido como boticário Ferreira, político, militar, farmacêutico, presidente da Câmara e também prefeito de Fortaleza por dois mandatos, abriu uma botica, reformou e urbanizou a área, consolidando o espaço como ponto central da cidade.
As primeiras construções eram ricas em arte e cultura. Histórias cercavam os monumentos ao redor da praça. O Café Java, por volta de 1892, foi o primeiro café-quiosque com requinte francês, onde literatos e poetas reunidos criaram a Padaria Espiritual, grupo artístico e literário conhecido nacionalmente.
Já na década de 1950, abrigando lojas, lanchonetes, bancas de revistas e o Abrigo Central, era o que hoje conhecemos por shopping center. A praça ostentava grandes hotéis com estruturas deslumbrantes. O Hotel Savanah foi um deles e um dos mais altos. Luxuoso, o hotel hospedou figuras importantes do país, como presidentes e artistas. E ainda o Hotel Excelsior, inaugurado em 1931, o edifício mais antigo e o primeiro “arranha-céu”, e que continua de pé na capital alencarina.
Identificação patrimonial
Olhar para a praça é como ver um grande espelho de nossas origens enquanto sociedade e toda a referência está no enredo e na tradição daquele local. A valorização do lugar está nas expressões artísticas, no comércio e nos costumes tradicionais como parte da herança dos cearenses. Quem nunca tomou um caldo de cana com pastel na Leão do Sul, pastelaria aberta desde 1926, com o aviso inusitado para o cliente: “azeitona do pastel possui caroço”?
As pessoas moldam sua relação com a praça de acordo com seus ideais de conhecimento e sua visão histórica. Para o professor aposentado e historiador Sebastião Rogério Ponte, o espaço ainda sustenta eventos interessantes. Ele acredita, porém, que a ocupação noturna do espaço poderia ser melhor cuidada, conservada e preservada por meio do ensino da história do Ceará, de espetáculos artísticos, de livros e artigos. “Só aqueles estabelecimentos que mantiveram suas estruturas arquitetônicas originais preservam a memória da praça”, comenta Sebastião.
Com o mesmo segmento de visão, o historiador Gleudson Passos Cardoso, professor do Programa de Pós Graduação em História, Culturas e Espacialidades da Universidade Estadual do Ceará (UECE), afirma que a memória precisa ser reutilizada por meio de marcos como pequenos monumentos. Relembra também a contação de mentiras em volta do Cajueiro Botador ou da Mentira, que ficou conhecido como encontro dos Potoqueiros da época. “Seria um bom começo enquanto política cultural para fomentar as referências da praça como patrimônio local”, acrescenta.
Para Sebastião Rogério, a Coluna da Hora foi amada pela população, mas foi demolida em 1968. “A população pediu e, ainda bem, que a Coluna da Hora voltou, mesmo que com material diferente”, acrescenta o professor. Autor do livro ‘Fortaleza Belle Époque, reformas urbanas e controle social’, ele analisou a urbanização social d praça que catalisou inúmeros acontecimentos importantes de Fortaleza. Em seu entorno ficavam as sedes do poder administrativo, lojas, bancos e cinemas. Era o lugar certo para marcar encontros no centro até 1955, pois até essa data os bondes e ônibus chegavam e partiam de lá. Era prazeroso contemplar o espetáculo da multidão em desfile.
Sob o olhar do paisagismo
A arquiteta Julia Miyasaki, professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unichristus, entende que o espaço sempre teve a vocação de reunir as pessoas e a diversidade de intervenções auxiliou esta socialização. Sobre resgatar antigas construções, a professora diz achar “desnecessária qualquer intervenção nova na praça, muito menos a recriação de mais elementos do passado”. Para a arquiteta, são recorrentes implantações em praças que não precedem a estudos e pesquisas na área de urbanismo e arquitetura.
Sobre as mudanças feitas pelos arquitetos Delberg Ponce de Léon e Fausto Nilo na Praça do Ferreira, a ação ocorreu devido ao movimento nacional e internacional no meio arquitetônico da época. “Apesar das críticas ao aspecto historicista, considero um bom projeto, embora haja pontos a melhorar como um diálogo mais direto da praça com o entorno, dificultado pela existência dos quiosques nas laterais”, complementa a professora Julia.
Autora da dissertação, ‘A Praça do Ferreira em Quatro Tempos, paisagismo e modernidade em Fortaleza’, ela alega que esbarrou em diversas dificuldades, e, uma delas foi a escassez de documentação. Escolheu a Praça do Ferreira por ter passado por alterações arquitetônicas e urbanísticas em épocas distintas. E não considera necessário requalificar a praça, pois, na opinião dela, mantém sua vitalidade. “Acredito que seria um erro alterar a Praça do Ferreira, pois o projeto que lá está executado funciona muito bem e já está gravado na memória afetiva da cidade”, conclui a arquiteta.
SERVIÇOS
Livro: Fortaleza belle époque. Reformas urbanas e controle social (1960-1930)
Autor: Sebastião Rogério Ponte
Edições: Demócrito Rocha
Livro: Padaria Espiritual, biscoito fino e travoso
Autor: Gleudson Passos
Publicado pela Secult, 2002