Consciência Negra: População negra é mais atingida por violência, desemprego e falta de representatividade
Relatório da ONU mostra que no mercado de trabalho, pretos e pardos enfrentam mais dificuldades também na progressão de carreira
Em 21 março de 2022, o “Jornal Nacional” publicou matéria sobre uma pesquisa divulgada no mesmo dia sobre um dos aspectos mais comuns de discriminação racial no Brasil.
A pesquisa é do Instituto Locomotiva e revelou que circular pelas cidades é um desafio para pessoas negras. A matéria mostrou que 33% dos negros entrevistados responderam que já sofreram racismo no transporte público, 65% dos trabalhadores negros do transporte foram vítimas de preconceito durante o expediente, 72% dos participantes (brancos ou negros) presenciaram uma situação de racismo em seus deslocamentos.
A pesquisa mostrou que as formas de discriminação mais comuns são menosprezo, abordagens desrespeitosas e agressões verbais e expressões racistas. 69% dos entrevistados consideram o racismo comum no dia a dia, 25% acreditam que essas atitudes não são punidas.
Dados divulgados pelo IBGE mostram que mais da metade da população brasileira, o equivalente a 54%, são pretos e pardos, e desses, a cada dez pessoas, três são mulheres negras. Esses números apontam também para uma desigualdade social, que reflete a ausência de políticas públicas e o aumento da violência coletiva.
Segundo dados da pesquisa realizada pelo IBGE, homens, jovens negros, de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no país. Esse grupo é representado hoje por 78,9% dos negros brasileiros.
As mulheres negras também são as maiores vítimas de violência doméstica. Entre 2003 e 2013 o número de mulheres negras assassinadas cresceu 54%, enquanto as violências relacionadas às mulheres brancas cresceram em 10% no mesmo período. Além disso, as mulheres negras também são as mais atingidas pela violência obstétrica, e pela mortalidade materna, segundo dados do Ministério da Saúde. Dados do Atlas da Violência 2021 mostram que os feminicídios entre mulheres negras cresceu na última década, quando 50.056 mulheres foram assassinadas por seus companheiros no país.
Em março de 2022, a Assembleia Geral das Nações Unidas, um dos seis órgãos principais da ONU, se reuniu com o propósito de debater o assunto, no encontro “Vozes para a Ação Contra o Racismo”. Nessa reunião, o secretário-geral da ONU, António Guterres disse que o preconceito continua a envenenar instituições, estruturas sociais e a vida cotidiana em diversas sociedades. Para Guterres, a discriminação racial é “um motor de desigualdade persistente e nega às pessoas seus direitos humanos fundamentais”. António Guterres abordou a relação entre o racismo e a desigualdade de gênero, considerando “inconfundíveis”, além de enfatizar que os impactos têm piorado “nas sobreposições e interseções de discriminação sofridas por mulheres de cor e grupos minoritários”.
Guterres convidou o mundo a levantar a voz e agir de forma decisiva, perante a responsabilidade de um maior engajamento com movimentos pela igualdade e pelos direitos humanos em todos os lugares. No pronunciamento foi destacado que é necessário solidariedade com as pessoas fugindo de conflitos ou perseguições, baseados em raça, religião ou etnia. Guterres pediu também um novo contrato social com foco “em direitos e oportunidades para todos, para combater a pobreza e a exclusão, investir na educação e reconstruir a confiança e a coesão social”.
O secretário-geral chamou a atenção global a respeito da importância da justiça restaurativa para poder compensar o legado de séculos de escravidão e colonialismo. Outro apelo dele é que haja maior vontade política para acelerar a ação em favor da justiça e igualdade racial com tratados existentes.
No Brasil, em julho de 2022, os casos de discriminação racial registrados pela Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo no primeiro semestre de 2022 já superaram o total de casos dos dois anos anteriores, de acordo com os dados da pasta. Nos primeiros seis meses do ano, os canais de denúncia da secretaria registraram 265 casos de discriminação. Esse número já é maior do que o total registrado entre 2019 e 2021 (251 casos).
Lembrar a importância dos povos e da cultura africana na construção social e cultural brasileira, assim como a necessidade de abordar temas como o preconceito e a diversidade étnico-racial em diferentes esferas da sociedade, é a proposta do Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro. A data, que pode vir a tornar-se feriado nacional, (o projeto aguarda votação no Senado Federal) é celebrada desde 1971, quando o Grupo Palmares, formado por jovens negros do Rio Grande do Sul, realizou um ato vocativo à resistência negra.
Com o objetivo de ajudar as pessoas a se sentirem mais incluídas, surgiram os Coletivos, que podem ser entendidos como um conjunto de pessoas que têm objetivos em comum e lutam pelas mesmas ideias. Aqui no Ceará, Michael Gomes, professor de história, fundador do Coletivo Dendê de Luta, CEO do Instituto Favelar, líder de Relacionamento com as Favelas e Ruas na Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes), diz que em suas composições coletivos buscam aglutinar, em boa medida, soluções, vivências e perspectivas para as mais variadas situações. “Penso que um dos grandes objetivos de estar em coletivo, é, sobretudo, reconhecer-se enquanto sujeito ativo e conectado às vivências partilhadas e ao sentimento de pertencimento”, disse.
Michael Gomes aponta que o coletivo da comunidade do Dendê, no bairro Edson Queiroz, surgiu no início de 2018 (mais especificamente, na noite de 10 de janeiro de 2018), quando o grupo se reuniu em uma escola de computação para o lançamento de um manifesto que ultrapasse fronteiras e estigmas. “A Favela não é um reduto de marginalidade, existe muita potência e protagonismo aqui. Nascemos para sermos propositivos, sermos parte das soluções dos problemas que vivenciávamos”, disse.
Já para Darlan Aragão Evangelista, psicólogo e atuante no campo das políticas públicas no município de Fortaleza e fundador do Coletivo Omoloko Ceará, todo Coletivo visa um bem, “haja visto que podemos compreender que a exemplo de um alcateia, os lobos que fazem parte dela são das diversas tipologias, porém cada um respeita sua identidade de habitat, as diferenças de personalidades são essenciais para a sobrevivência de um grupo”.
Sobre a relação que há entre o coletivo religioso e o Dia da Consciência Negra, Darlan, de início, fala de Zumbi dos Palmares e usa a data para celebrar a vida desta personalidade histórica.
O psicólogo diz: “Devemos evidenciar a luta social, as perseguições diárias e contidas no fluxo da vida onde homens e mulheres têm seu sangue derramado, seu suor abatido e suas rotinas destruídas. Jovens negros, que sofrem a perseguição da policia apenas pela sua cor. Nossa relação com esse dia é tornar ainda mais contundente o que devemos fazer de forma ampliada com essas atitudes que corroem nossa sociedade”.
Darlan afirma que “nossa função é unir, rompendo as barreiras estéticas de uma sociedade ainda racista e preconceituosa e misógina”, além de construir pontes de reflexão e ocupar espaços sociais que devem ser compartilhados.
No entanto, o psicólogo aponta que a “identidade embranquecida de uma sociedade limitada” ainda traz características que precisam ser destruídas e, dessa forma, deixar “à mostra o valor necessário que temos”, enfatiza.
Os coletivos, para Darlan Aragão, movimentam a sociedade e fazem com que, independente da ideologia da pessoa, as questões sociais, religiosas epolíticas, venham a perceber uma visão ampliada e dedicada aos diversos temas. “Portanto nosso coletivo, o Omoloko Ceará, visa isso, reunir, singularizar, trazer a tona, lutar, dar ênfase frente aos atos e divergências, ser resistência numa sociedade e também nas práticas da religião de matriz africana”, disse Darlan.
Quando questionado sobre o porquê de criar um coletivo, Darlan aponta para o preconceito da sociedade com as religiões de matriz africana. “Reunir a necessidade de gritar sobre os temas da minha prática de religião de Matriz Africana, a Umbanda-Omoloko, aquilo que temos em comum em todos nós povos de terreiros, o sofrimento da perseguição, a intolerância, o desrespeito ao sagrado, enfim um fio de coisas que precisam ser unidas em um novelo para transformar tudo isso em uma grande colcha de cama para nos aquecer no frio”, disse. Além disso, o mesmo diz que criar o Omoloko-Ceará é “reunir tudo aquilo que somos”, é também resgatar a história de um culto, reduzir o senso comum das pessoas a respeito de algumas práticas religiosas de matriz africana e que, portanto, foi criar pontes, construí-las como elos seguros frente a muitas divergências e “sem largar a mão de ninguém, até daqueles descrentes da fé”.
Sobre as pessoas que participam, Darlan afirma que, atualmente, o Omoloko Ceará é composto, em sua maioria, por pessoas membros de religião de matriz africana e deixa claro que “eles têm a identidade da prática da Umbanda-Omoloko como elo que reúne as diversas manifestações do culto Omoloko”.
Darlan enfatiza que a luta dos povos de terreiros é diária na busca para romper o preconceito ainda interno aos praticantes das religiões de matriz africana.
No Coletivo da Comunidade do Dendê, muitas vidas já foram construídas. Michael Gomes, diz que pelo Coletivo já passaram muitas pessoas, de estudantes da comunidade até psicólogos, professores, arquitetos e empreendedores. A grande maioria das pessoas, cerca de 90% delas, eram residentes da própria comunidade, mas o espaço também acolheu pessoas de fora.
Michael Gomes também aponta que, ao longo da história do Coletivo Dendê de Luta, foram desenvolvidas diversas ações de impacto social para a comunidade, eventos culturais como saraus, show de talentos, desfiles, desfiles, amostras culturais, a Primeira Parada da Diversidade do Dendê e arraiá junino: “Nos tornamos um canal de representatividade da comunidade frente ao poder público, atuamos fortemente em combate às rampas de lixo na comunidade, facilitamos a renovação de toda a iluminação pública do bairro, pois até então, por conta da violência, a prefeitura não havia feito a mudança das luminárias dos postes; fiscalizamos o atendimento no posto de saúde que atende as nossas famílias, participando do conselho regional de saúde; além de propormos melhorias para o transporte público da região, levando até a ETUFOR as principais demandas da comunidade”. Ele também aponta que as pautas que os mobiliza estão centradas na cultura, na cidadania e no empreendedorismo.
Sobre projetos futuros, Michael afirma que hoje o Coletivo atua lado a lado com o Instituto Favelar, que é o desdobramento de toda as experiências e expertises adquiridas ao longo de sua trajetória. “Permanecemos nas nossas raízes, na comunidade do Dendê, e aqui ficaremos para darmos continuidade a esse nosso propósito; no entanto, também temos a missão de chegar em outras favelas da cidade, pois percebemos que somos um corpo coletivo, desse modo, o problema que afeta uma favela, consequentemente, ocorre em outra, assim como suas respectivas soluções – para a mesma dor, receitamos o mesmo remédio, o protagonismo, a coletividade”, afirmou Michael Gomes.
Sobre o Dia da Consciência Negra, Michael se posiciona assim:“nessa data simbólica para nós favelados, negros e negras, lançamos um especial sobre empreendedorismo negro nas redes sociais (Instagram @institutofavelar). Gomes diz que, nessa ação, identificaram empreendedores negros dentro da comunidade e que querem enaltecer, a partir de uma sequência de vídeos temáticos, seus talentos e sua criatividade.
No caso de Darlan, quando questionado sobre como o coletivo iria comemorar o Dia da Consciência Negra, informa: “Nós povos de terreiro realmente celebramos a morte a passagem. Para nós, quando perdemos alguém esse momento é celebração. Queremos recordar através da morte de Zumbi e de tantos jovens da periferia do Brasil, que são derrubados pela força do ódio e o racismo impregnado na nossa sociedade”, disse.
O Coletivo realiza no domingo, 20, uma live às 17h no canal do YouTube com a temática “Zumbi dos Palmares”, celebrando da “forma mais tradicional, no tambor, na festa, na gira do toque da macumba, cantando para os Orixás, entidades de umbanda e todos encantados, a morte de Zumbi dos Palmares”.
Por fim, Darlan afirma que isso é celebrar a vida e que a luta nunca vai parar.
Dia da Consciência Negra
O Dia da Consciência Negra é comemorado em 20 de novembro e, de acordo com a “Vogue | Atualidades”, foi instituído oficialmente no Brasil pela Lei nº 12.519.
A escolha da data faz referência à morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, e uma das principais personalidades da luta contra o racismo no Brasil. O site citado mostra que a data é dedicada à reflexão da inserção do negro na sociedade brasileira, além de “celebrar a fundamental negritude do nosso país”.
Texto: Bernardo Barros (Jornalismo / UNI7)