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A cultura entre fios

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A renda de bilro é um ofício transmitido de geração para geração e luta para continuar vivo. A renda é um dos símbolos da cultura do Ceará

Wilnan Custódio

Vinda da Europa e aprimorada em terras brasileiras, ela se tornou um dos maiores símbolos da cultura e do artesanato brasileiro. Com mais de 300 anos de história no Brasil, a renda de bilro é sinônimo de Nordeste, de praias e da criatividade que o povo nordestino esbanja. No Ceará, ela também ganha contextos culturais importantes, com vilarejos e cidades inteiras sendo conhecidas por serem pontos de venda deste artesanato, principalmente para turistas.

A empresária Ethel Whitehurst, carioca radicada no Ceará há 52 anos, recorda que a mãe dela, Yara Whitehust, passou a vir ao estado em 1960, para comprar peças e vender no Rio de Janeiro. Dessas viagens surgiu uma paixão que, com incentivo de amigas, veio e se fixou em terras cearenses. Desde então elas passaram a vender e a exportar essas peças. “Um dos fatos mais importantes foi começar a exportar, algo que faço desde 1980”, lembra Ethel. O amor pela renda a levou a desbravar o Ceará e a encontrar esse artesanato em diferentes regiões do estado. Dona Yara hoje tem 86 anos, se aposentou, mas sua força de vontade foi um ponto de virada na história da comercialização da renda cearense para o exterior. Seu legado hoje é seguido pela filha. 

Artesãs transando fios

Almofada, papelão, agulhas, linha e o bilro. Esta é a matéria-prima para fazer uma das artes que mais encanta o Brasil e que, apesar de histórias diferentes, as artesãs que a produzem guardam, na grande maioria, um fato em comum: conheceram esse universo por intermédio das mães, avós ou alguma parente.

Um dos orgulhos de dona Maria de Lourdes era envelhecer fazendo renda [Foto: Arquivo pessoal] 

Gracimar Dantas, rendeira do Iguape, em Aquiraz, diz que aprendeu “primeiro com a minha tia-avó, olhando e desfazendo alguma coisa que ela errava”. Segundo conta, a avó tinha ciúmes das peças que produzia, mas deixou a neta desfazer seus erros, conforme sua visão ficava ruim por conta da idade. Gracimar, que também é conhecida como Mana, diz que “quem aprende a desmanchar renda, aprende a fazer”. Aos dez anos ela perdeu a visão de um dos olhos, mas disse que isso não é desculpa para desistir, “Vou até o último suspiro, fazendo renda ou desenhando ela”. 

“Vou até o último suspiro, fazendo renda ou desenhando”

Gracimar Dantas

Na Prainha, também em Aquiraz, a artesã Maria Hilda revela que aprendeu com a mãe aos 10 anos, e, desde então, nunca desaprendeu, mesmo morando 25 anos em São Paulo e no Rio. Ela diz que quando voltou para o Ceará, e passou a produzir renda novamente, “minha mãe me dizia que renda é igual andar de bicicleta, a gente aprende e não esquece mais”.

Hilda perdeu a mãe, Dona Maria de Lourdes, em decorrência da covid-19, mas segue o legado que ela deixou com muito carinho. Maria de Lourdes também amava fazer renda, e produzia junto com a filha e outras artesãs da Prainha. “Minha mãe disse que no dia em que ela parasse de fazer renda, o coração dela pararia de bater”, diz Hilda, sentida.

Segundo Ethel Whitehurst, dona Lourdes era uma das mais antigas rendeiras do estado, e que “com todo seu cuidado, tinha amor pela renda. Ela amanhecia e anoitecia fazendo renda”. Foram 70 anos transando fios, de um ofício que aprendera aos seis anos de idade. Dona Lourdes foi um patrimônio que, mesmo “ausente”, deixou seu legado vivo.

A empresária disse ainda que são muitos anos comercializando renda e fazendo amigas por meio dessa arte, mandando a renda do Ceará para vários países do mundo, até para o Japão. Para ela, não é simplesmente fazer renda, é usar a renda para transformar a vida das rendeiras. Por isso, destaca que “na nossa empresa nós só trabalhamos com a renda do Ceará”. 

Gracimar e Hilda lembram que, ao ser aprimorada no estado, a renda ganhou características próprias, e, em que cada localidade, há uma forma específica de fazer a renda e trancar seus fios. Basta botar o olho e se sabe se a renda é do Aquiraz, do Trairi, de Juazeiro do Norte, dentre outros municípios cearenses.

O futuro dessa arte

A grande discussão sobre a preservação de patrimônios culturais também passa pela renda de bilro. E para as rendeiras, o futuro exige desafios e uma atuação maior do poder público. “Acho que a renda aqui já deveria ser considerada um patrimônio”, diz Ethel, ressaltando que, para a renda continuar existindo, é preciso dar atenção ao “capitalismo consciente”, onde é importante a rendeira produzir para viver e ter a renda como sua profissão. 

Ao falar sobre os direitos da categoria, Hilda cita o trabalho das primeiras damas do estado, como sendo pessoas interessadas em prover a renda, mas faz um desabafo sobre os direitos trabalhistas das rendeiras: “a gente não se aposenta como rendeira. Acho um absurdo isso! Um pescador se aposenta como pescador, marisqueira como marisqueira, mas a rendeira não!”.

Gracimar entende que elas deveriam ter apoio maior do governo do estado. “Penso que deveria fazer muito mais”, já que para ela a renda representa uma grande parte da cultura do Ceará. Já Ethel defende que deveria haver uma atuação maior do poder público, e sugere que cada município, que tem a cultura de renda, deveria ter uma escola para novas gerações aprenderem o ofício.

Por isso, Hilda e Gracimar temem pelo futuro dessa arte. As duas acham que em alguns anos a renda pode desaparecer ou virar apenas uma prática só por esporte. Segundo Hilda, as meninas de hoje não têm interesse pelo ofício, principalmente pelo fato de outras profissões serem mais convidativas e pela renda não dar mais retorno financeiro satisfatório. Elas são enfáticas ao afirmar que não conseguem viver apenas de produzir e vender renda. 

Grupo de rendeiras da Prainha [Foto: Arquivo pessoal] 

Apesar disso, houve conquistas, como a criação dos centros de rendeiras no Iguape e na Prainha, ambos em Aquiraz, e também as associações. Hilda diz que é muita luta, mas que tudo isso vale a pena, porque envolve amor. “Nós, artesãs, vendemos cultura e quem vende cultura vende sonhos”, e Gracimar complementa: “não faça por dinheiro, para você não desistir. Faça por amor, amor à cultura, amor ao Ceará, amor a você mesma”. Hilda lembra, por fim, da paixão que tem de fazer e produzir todos os dias algo que faz parte da tradição do estado: “me sinto envaidecida por fazer parte dessa história” e completa: “Nós, artesãs, vendemos cultura, e quem vende cultura vende sonhos”.

“Nós, artesãs, vendemos cultura, e quem vende cultura vende sonhos”

Maria Hilda

SERVIÇO 

Gracimar Dantas 

Instagram: @manaartesanato 

Maria Hilda 

Instagram: @hildasousa_25 

Ethel Whitehurst 

Instagram: @ethelwhitehurst   

@yamordaethel 

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