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Literatura viva e escrita

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Uma das expressões mais marcantes da manifestação da cultura popular brasileira, mais precisamente do interior nordestino, continua viva e encantando as pessoas. As barreiras do tempo são vencidas pela excelência do gênero literário que é o cordel feito no Brasil

Enzio José

Desde que a literatura de cordel chegou ao Brasil – também conhecida como folheto, literatura popular em verso -, por volta do século 18, com os portugueses, o cordel se fez como resistência da cultura, especialmente na região Nordeste. Mas, o que pouco se sabe, por parte dos leigos do assunto, é que este tipo de literatura não surgiu em terras tupiniquins.

Segundo estudiosos do assunto no país, como o professor de Literatura e cordelista, Stélio Torquato, e o cordelista, escritor, cartunista e produtor cultural, Klévisson Viana, o cordel tem origem na Europa, na Idade Média, e no Brasil foi se mesclando e se tornando algo muito diferente do que era produzido no período medieval. Também há estudos que apontam o cordel como um fenômeno mundial, existindo em vários países. Cada local tem suas características próprias, mas, com certeza, o de conteúdo mais diversificado é o produzido no interior nordestino, seja pelos personagens, disputas e situações. Um dos pesquisadores sobre o tema faleceu durante a produção desta reportagem. Trata-se do professor Gilmar de Carvalho, que é tema de artigo (ver coordenada).

Os temas dos livretos que são publicados, por ser um produto comum no Nordeste, tendem a tratar da vida sertaneja em sua maioria. Os primeiros cordelistas eram originários do meio rural e migraram para a cidade grande, principalmente Recife, para conseguir publicar suas obras. 

Leandro Gomes de Barros, considerado o pai do cordel (1865-1918), foi um dos migrantes que incorporaram a poesia popular às suas “narrativas sertanejas”, que contavam as histórias de animais ferozes e a seca. Ele também abordava temas da vida urbana, como impostos, ações governamentais, moda, prostíbulos etc. Alguns temas comuns estão ligados à cultura da região e suas figuras, tais como Lampião, Maria Bonita, Patativa do Assaré, Luiz Gonzaga, e também o folclore, pau de arara, entre outros. É importante destacar, porém, de acordo com Stélio Torquato, que “nenhum assunto é estranho ao poeta popular, qualquer tema, até Física Quântica, pode ser cordelizado”.

“Nenhum assunto é estranho ao poeta popular”

Stélio Torquato

Desafios para manter o cordel vivo

O cordel é uma tradição literária regional que vai passando por gerações, em meios diferentes. Stélio Torquato teve seu primeiro contato em um programa de rádio nos anos 70. Já Klévisson por intermédio do pai, que sempre gostou de poesia. Mas, como o cordel consegue se sustentar firme nos dias de hoje, nesse mundo informacional e da internet?

Stélio, de cangaceiro, na Bienal do Livro de São Paulo, em 2018) [Foto: Rodrigo Casarin]

O mundo tecnológico está em constante evolução, e a leitura tende a diminuir cada vez mais, principalmente no Brasil, um país onde se lê pouco. Esta literatura está conseguindo, no entanto, se manter bem viva, aponta Torquato, pois o cordel está presente nas bienais de livros, escolas e bibliotecas. Também existe o PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático), em que obras populares do cordel têm sido adquiridas neste programa do Ministério da Educação. Um ponto importante trazido por Klévisson é a qualidade e quantidade de autores brasileiros. Vale ressaltar que as obras produzidas aqui são estudadas no mundo inteiro, o que deixa a cultura sempre em destaque.

O cordel possui seu público fiel e está sendo cada vez mais procurado pelos leitores. Dentre eles estão os que buscam o produto, movidos pelo afeto, pois os folhetos fazem parte da sua vida desde a infância. Sendo assim, as editoras tradicionais, como até grandes editoras de outros gêneros, têm investido na literatura da rima e poesia. Para Torquato, o cordel ainda é alvo de preconceito por parte de intelectuais e educadores, que insistem em ver a obra popular como um produto mal escrito e destituído de qualidade estética.

A mulher no cordel

Ivonete Morais é um exemplo da mulher cearense, forte e cordelista, em um ambiente onde a maioria é homem, embora não tenha sido problema para ela, que já acumula 80 cordéis publicados. Suas produções são focadas na cultura nordestina e enaltecimento da mulher. 

 Ivonete Moraes em sua Cordelteca [Foto: André Morais]

Socióloga, cordelista, poetisa e escritora, ela garante que nunca sofreu qualquer tipo de discriminação por parte de homens do seu meio, e somente recebeu elogios de pessoas que desenvolveram seus temas ao lado dela. Ressalta que já chegou a participar de reuniões da Associação dos Escritores e Folheteiros do Estado do Ceará (AESTROFE), cujo presidente é Klévisson Viana, e diz: “dos 25 participantes homens, somente eu era a única cordelista mulher”. Observa que sempre foi respeitada e reconhecida por todos, pois é uma pessoa muito firme onde quer que esteja. Ivonete também faz palestra em hospitais e associações de mastectomizadas, relatando sua experiência de luta e cura de um câncer.

“Dos 25 participantes homens, somente eu era a única cordelista mulher”

Ivonete Moraes

O primeiro contato dela com o cordel foi durante encontro com outra cordelista mulher, a também cearense Maria Luciene, quando ficou admirada com ela declamando os próprios versos rimados. A cordelista fez um cordel para Ivonete no dia do seu aniversário, contando sua história. Foi convidada por Maria para fazer um curso de Literatura de Cordel. Durante este curso, fez seu primeiro cordel: Amor de A a Z. Participou ainda de um concurso de poesia dos funcionários públicos do Ceará, no qual tirou primeiro lugar e tomou gosto para a produção.

Na perspectiva de tentar manter a cultura do cordel viva, Ivonete sempre participa de eventos culturais e ministra oficinas em escolas e universidades. Ressalta também que uma boa forma de incentivar novas garotas a entrarem nesse meio é divulgando seus cordéis, e isso ela sempre tem feito. Além de manter sua cordelteca, espaço para suas produções, a motivação da aposentada para continuar produzindo é a satisfação de preencher seu tempo ocioso, com a poesia do cordel, que eleva sua autoestima.

O mundo é cordel

Nunca, de fato, tendo saído do Jornalismo, o professor Gilmar de Carvalho, morto precocemente no último dia 17 de abril, fez carreira na pesquisa acadêmica desafiando uma das regras que mais aproxima esses dois campos da expressão e do conhecimento. Ele construiu uma obra das mais festejadas Brasil afora sem se deixar prender ou perder na ilusão da objetividade. A reflexão e o pensamento de Gilmar de Carvalho se fizeram de encontros, encantos e afetos.

O cordel foi uma de suas maiores paixões. E cordel, para ele, não era exatamente sinônimo de folheto. Cordel é o mundo. Que diga: o mundo é cordel. Cordel é cinema, é música, é literatura, é dança, é publicidade. Enfim. É uma forma de ver e sentir o mundo. Uma forma encantada de ver e sentir o mundo. Gilmar de Carvalho não identificou toda essa potência de uma hora para outra, evidentemente. Ao se dar conta, no entanto, propagou por onde andou. 

Ao longo de sua trajetória, Gilmar não só estudou o cordel com afinco, como também recorreu ao cordel para criar. Em sua literatura, o maravilhoso do cordel teve sempre muita presença. Como pesquisador, porém, dedicou-se ao registro e à compreensão da produção e da recepção do cordel com afinco. Nesse caminhar, ora apresentou-se como especialista ora mais parecia um guardião. Gilmar sempre teve acesso fácil ao mundo dos gravadores, poetas e tipógrafos. Nunca foi um estrangeiro ali.

“Gilmar de Carvalho no mundo / Foi progresso e evolução / Na comunicação e no social / Fez grande transformação / De talentos era descobridor / Do Nordeste o desbravador / Potencializando a tradição”, assim registrou sua partida a pena de João Pedro de Juazeiro. Gilmar se encantou num dia e no outro já era poesia. Vai ver que essa era sua sina. Além de uma rede enorme de quereres, Gilmar deixa como legado uma obra essencial para garantir a chama do cordel sempre viva.

Magela Lima 

Pesquisador e jornalista

SERVIÇO

Klévisson Viana – cordelista

TEL: (85) 99675-1099

Instagram: @tupynanquimcordelbrasil

Stélio Torquato – professor e cordelista

TEL: (85) 98770-2056

Instagram: @profsteliotorquato

Ivonete Morais – cordelista

TEL: (85) 98830-4788

Instagram: @ivonete.cordelista

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