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PERFIL: Voluntariado, um elixir da vida

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Entrevistas

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A história de Vanilda, que se reinventou para ajudar o próximo, dando amor, carinho e esperança, em especial às crianças assistidas pela Associação Peter Pan

Conhecida como cidade dos três climas, Itapipoca, a 136 km de Fortaleza, desfruta de um território vasto e amplo, com direito a belas praias, serras e sertão. Também possui um povo batalhador, acolhedor e cheio de histórias para contar. Como, por exemplo, a da dona de casa Vanilda Martins. Itapipoquense, veio para Fortaleza ainda jovem, batalhou nos estudos, casou, teve filhos e, atualmente, mora no bairro Antônio Bezerra. Há dez anos, porém, a vida dela ganhou novo sentido: canta e encanta a todos como voluntária na Associação Peter Pan, no bairro Vila União, distribuindo amor e carinho para as crianças em tratamento contra o câncer.

Nascida de uma família com poucas condições financeiras, em Itapipoca, descobriu logo cedo que a vida não seria tão fácil. Ainda na infância viu seu pai sair de casa, separando-se da sua mãe. Nada disso foi suficiente para tirar a alegria e o brilho de viver de uma criança sapeca e danada. Com as memórias de vida, um sorriso no rosto e um semblante de nostalgia, ela contou alguns detalhes do passatempo predileto de infância.

Vanilda Martins e os demais voluntários da Associação Peter Pan (Foto: Jarlesson Vanley)

– A prefeitura da cidade, na época, não dava condições para as crianças fazerem nada. Pular o muro da escola era a única maneira que encontrávamos para que eu e minhas amigas pudéssemos jogar handebol. Mesmo com as dificuldades de uma vida sofrida, sempre fui alegre. Amava jogar bola e brincar de bila. O que minha mãe dizia serem brincadeiras de meninos.

Educada de maneira rigorosa e na linha, seguiu sempre o bom caminho. Com a expressão de orgulho relatou que a fome que passara na infância, nunca foi pretexto para tomar decisões erradas na vida, tudo exemplos dados pela mãe. “Nasci e vivi em um meio humilde, mas muito feliz e honesto, pois o que não falta é orgulho da minha história”.

Escolha de um novo caminho

Ao terminar os estudos normais em Itapipoca, sua única opção era seguir a vida de professora, o que não agradava. Toma a decisão de deixar sua terra natal para continuar os estudos e tentar a vida na capital cearense. Com vinte e um anos e recém-chegada em Fortaleza, a jovem passa a morar na casa de uma prima. Após prestar três vestibulares e não conseguir a aprovação, tudo parecia dar errado e as esperanças de apagar as dificuldades do passado ficavam ecoando em sua mente.

Aos vinte e nove anos conheceu Gilberto, a quem jurou amor eterno e trocaram alianças. Em tom suave, fala da vida com o marido.

– O começo do casamento não foi fácil. Sem condições, passávamos por grandes necessidades. Meu marido trabalhava na firma de construção da minha família. A proprietária era minha tia, com quem fui morar anos antes de conhecê-lo. Tivemos três filhos. Todos criados com muitas dificuldades, mas direcionados na vida. Hoje, com boas condições, vejo meu filho mais velho ser dono de uma empresa em Itapipoca e com duas filhas lindas, minhas netinhas Lívia e Marina. Meu filho do meio agora é personal trainer e tem uma assessoria esportiva, ensinando em alguns locais da cidade. Já minha filha mais nova focou em trabalhar. Como supervisora das Lojas Renner, vem conseguindo crescer e se destacar no trabalho todos os dias.

Amor pela corrida é a motivação

Acordar três vezes por semana às 4h30min da madrugada para correr e ainda fazer academia para fortalecer a musculatura. Essa é a rotina de Vanilda, que estampa no sorriso e na empolgação das palavras, o amor pelo esporte e pela corrida de rua.

– Sempre gostei de ter uma alimentação saudável, principalmente por gostar de correr e competir. Na minha casa, tenho na sala uma estante repleta de troféus e medalhas, todas conquistadas com a corrida. Um dos incentivos para continuar correndo é poder treinar ao lado do meu filho do meio. Sempre que ele vai dar aula, vou treinar com ele. Também levamos o pai dele para treinar, tudo como uma forma de tirá-lo do sedentarismo e incentivar ao esporte. Atualmente venho treinando para algumas corridas de dez quilômetros e toda essa rotina me ajuda a manter o foco.

Paixões da dona de casa

Para ver Vanilda se sentindo feliz, não é preciso muita coisa. Prendada e zelosa na cozinha, a paixão por cozinhar é algo declarado da dona de casa e de conhecimento de todos. Para quem conhece os seus dotes culinários, principalmente seus bolos, não há quem resista. Eles são desejados por todos que trabalham com ela.

Na cozinha é chefe de mão cheia, sente-se em seu habitat natural, adora preparar qualquer tipo de comida, mas para limpeza, não contem com ela. Cozinhar é uma alegria, uma terapia, no entanto, limpar é uma tristeza.

Doadora de amor e alegria

Em um dia comum, tempos atrás, sentada no sofá da sala, uma amiga lhe propõe algo diferente. E surge o convite para ajudar na Associação Peter Pan (APP). Cláudia, que já se voluntariava para auxiliar no projeto, convidara sua amiga para esse novo momento. O que ambas não sabiam, era que a Vanilda se apaixonaria loucamente por doar amor e ajudar as crianças em tratamento contra o câncer.

Imagem de Amostra do You Tube

No primeiro contato com a APP, não foi preciso muita coisa para começar o trabalho voluntário. Foi apresentada para a diretoria do projeto e logo foi alocada no setor da biblioteca e leitura para as crianças. Com pouco tempo, já estava à frente do Projeto Ler Faz Bem, que até hoje rende emoções, boas lembranças e alguns momentos tristes.

Ao caminhar pelos corredores da Associação, não faltam olhares gratos à Tia Vanilda, como é conhecida pelas crianças que estão em tratamento, como também pelos companheiros de voluntariado, que olham com respeito e admiração. Por onde passa não deixa de sorrir para as crianças ou ter um simples gesto de afago e carinho. Todo esse amor é primordial para o trato de crianças com câncer, como contou:

– No tempo que cheguei para me voluntariar foi fácil, precisei só falar com a diretoria e pronto, já fazia parte do projeto. Hoje em dia não é mais assim. É preciso preencher dados e uma ficha. Iniciei minhas atividades na biblioteca da Associação. Hoje também faço parte do projeto Ler Faz Bem que, a partir dos livros e da leitura, auxilia as crianças nesse momento tão difícil de suas vidas. As crianças mais jovens não entendem o que está acontecendo com elas. Muitas não sabem ler, e ou expressar o que sentem com o que estão passando. Então, esse é o papel da leitura. Lemos histórias para elas. Ajudamos dando esperança e fantasia. É uma válvula de escape para tanta dor e sofrimento. É comum e com muita frequência as crianças saírem da quimioterapia passando mal ou chorando, mas, quando começamos a conversar com elas, lemos uma historinha para elas, logo as lágrimas são substituídas por curiosidade e sorriso. Fazemos e tratamos todas as crianças como nossos filhos, pois entendemos as dores dos familiares, que muitas vezes não possuem condições psicológicas para um suporte mais intenso no momento.

Em uma conversa mais delicada e com sentimentos em alta, desabafa sobre alguns momentos vividos dentro da APP. “Trabalhar com crianças, principalmente quando estão doentes, não é para todo mundo. É preciso tato e muita aptidão”.

Todos que entram na Associação passam por um treinamento de humanização, mas é preciso manter a distância sentimental do sofrimento vivido pelas crianças. Algumas descrições tocam até mesmo os mais insensíveis, como a história de uma criança que desde novinha faz tratamento na APP. O câncer fez com que ela ficasse cega, o que constantemente a levou a precisar trocar o olho de vidro, devido ao seu crescimento. Uma das situações mais difíceis desse caso relatado pela voluntária, com um semblante de choro, é a inocência da utilização do olho de vidro como brinquedo, e no menor dos descuidos é quebrado.

Todas as terças e quintas-feiras, entre oito horas da manhã e o meio-dia, Vanilda está na Associação Peter Pan para doar-se um pouco para as crianças, que muito precisam de atenção. Somente com o sentimento de amor e responsabilidade é que se pode dar continuidade neste trabalho diariamente. “Tudo aqui mexe com a nossa mente e nossos sentimentos. Não tem como não considerar como nossa família”.

Por ter medo de dirigir, o marido vai levá-la para a APP, e volta todos os dias para casa de ônibus. Em um dia atípico na Associação foi realizado um bazar, que a fez ir para casa muito tarde, mais do que de costume. No caminho para casa, dentro do coletivo enfrentou um assalto. Como estava cansada e desatenta na volta para o lar, demorou a entender o que se tratava. Mas, nem mesmo um momento adverso como este foi suficiente para diminuir o amor e a dedicação ao projeto e às crianças. Pelo contrário, só fez aumentar ainda mais a paixão de doar-se para ver o sorriso no rosto dos outros.

Imagem de Amostra do You Tube

Todo o aprendizado adquirido durante os dez anos de voluntariado na Associação Peter Pan, serviu para mostrar qual caminho que deveria ser seguido. Apaixonada por distribuir amor, carinho e esperança, viu no curso superior, a oportunidade de ajudar ainda mais todos que precisam.

– Atualmente estou cursando o 3º semestre do curso de Assistente Social em Itapipoca. E tudo aconteceu por acaso. Certa manhã, minha irmã me ligou e falou sobre a faculdade e o curso que estava sendo ofertado na cidade. Inscrevi-me e fiz a prova, e para minha surpresa, passei. Até o momento, minha assiduidade é total. Toda sexta-feira viajo para Itapipoca, pois o curso é no final de semana. Ah! Faltei uma vez, mas foi por causa de uma corrida…

Fazer o curso de Assistente Social, diz, é uma forma de se preparar ainda mais para o trabalho voluntário e ajudar nas mais diferentes situações. A ideia do curso nasce na necessidade de algumas famílias em uma assistência mais próxima, e que possa ajudar nos momentos delicados.

– Passei por um momento muito difícil na Associação. Anna era uma menina que estava se tratando. Ela era uma das crianças que participavam do Projeto Ler Faz Bem, amava todas as histórias de princesa, tudo a encantava. Mas, em um dia de tratamento, ela não resistiu e chegou a hora dela partir. Foi muito triste. Todos da Associação sentiram muito. Anna era muito querida e cativante.

O conhecimento e a experiência adquirida durante os dez anos de voluntariado, junto com o sentimento de tristeza deixado pelo falecimento da jovem menina, levou a voluntária a sugerir uma homenagem à pequena Anna: foi enterrada vestida de princesa. Este momento ela lembra com ar de melancolia.

Quem canta seus males espanta

Em um momento secundário do seu dia, a voluntária se reúne com outros membros da Associação para o ensaio do coral. O momento é bem descontraído e alegre, reflexo da importância do projeto para as famílias presentes e os pacientes da APP, como também a satisfação de cada membro.

O coral ensaia frequentemente para apresentações realizadas dentro da Associação Peter Pan e em outros hospitais. “Cantar faz bem para todos. Cantamos no coral por amor, tanto no trabalho voluntário e a felicidade que traz aos familiares que nos ouvem, quanto pelo amor à música.”

Coral de voluntários da Associação Peter Pan (Foto: Jarlesson Vanley)

– O sofrimento vivido pelos pacientes e seus familiares é muito grande. O Estado é omisso e muitas famílias não possuem condições adequadas para vivenciar uma barra tão pesada, sem contar com a postura de maridos que largam suas esposas e filhos em momentos como estes. Por isso o coral é uma forma de alegrar e trazer esperança para as mães e pacientes. Só quem é mãe sabe o sofrimento que é ter um filho doente e não conseguir fazer nada para ajudá-lo.

Ela lembra que o dia das mães deste ano foi um dia muito complicado e difícil, tanto para quem precisa da Associação, quanto para os voluntários que ajudam a aliviar o sofrimento deles. “Cantamos no dia dedicado às mães e a choradeira foi geral. Muitos de nós, que participamos do coral, paramos de cantar por não aguentar. Desabávamos e começávamos a chorar juntos. A comoção é generalizada. Mas no final ouvimos muitas palavras de agradecimentos e sentimos a esperança no olhar de todos.”

Imagem de Amostra do You Tube

O que esperar do futuro?

Com sessenta e três anos, estudante universitária, atleta, casada, mãe de três filhos e com duas netas, Vanilda Martins esbanja força, vigor e uma enorme vontade de viver. Sonha seguir a vida ajudando os outros, distribuindo amor, carinho e esperança onde passa, aprimorando-se profissional e pessoalmente.

Deixa claro, porém, que seu desejo para a vida é envelhecer e morrer fazendo o que gosta. Ajudando e disseminando amor por onde passa, sem deixar o espírito de voluntariado, que ela considera seu elixir da vida.

 

Texto: Jarlesson Vanley (8º semestre – Jornalismo)

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