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LET’S ROCK: Como consolidar uma história dentro do jornalismo policial

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Entrevistas

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Como alguém que não alimenta receio nenhum sobre o que fala, a jornalista Jéssika Sisnando revela histórias e facetas da sua trajetória como repórter da área de polícia: “Você sempre entra no momento mais crucial da vida das pessoas”

O incentivo dos pais e professores fez com que Jéssika Sisnando, hoje repórter policial do Grupo de Comunicação O Povo, despertasse interesse para matérias escolares afins ao Jornalismo. “Sempre tive mais uma ‘queda’ pelo Português, pela redação”. Sua atuação na área começou já na escola, quando compôs a equipe que distribuía o jornalzinho aos outros alunos.

Encontros de colegas de profissão durante operação policial em comunidade da capital (Foto: Arquivo Pessoal)

E não deu em outra quando pensou escolher qual curso de nível superior faria. Iniciou em Comunicação Social na Faculdade Cearense (Fac), com o sonho de ser jornalista de Cultura. O intuito era aliar o amor pelo rock à profissão. “Tinha um blog de rock. Gostava muito de rock e ficava sempre procurando bandas novas, alternativas, de garagem e autorais aqui do Ceará”.

Já no terceiro semestre conseguiu um estágio voluntário na Editoria de Cidades do Diário do Nordeste. Este foi o ponto de partida para estreitar sua relação com uma Fortaleza tão próxima, mas, ao mesmo tempo, tão distante. “Tinha um pouco de dificuldade, porque a maioria das pautas era na Aldeota. Não conhecia praticamente nada dessa parte da cidade. Moro no Conjunto Ceará, então conhecia mais o que ficava perto de mim: Conjunto Ceará, Bom Jardim, Granja Lisboa e Granja Portugal. Nunca me interessei, nem na época de criança e na adolescente, em andar por esse outro lado da cidade (Aldeota), que era uma área mais rica. Não sabia me situar nas ruas e nem era acostumada a andar de carro”, diz Jéssika.

Sua afinidade com a periferia foi percebida pelos gestores do jornal, que decidiram testá-la no Jornalismo Policial. A partir daí, passou a estagiar como repórter policial do Diário do Nordeste. “Logo quando comecei, me deparei com a minha vida, porque eu ia muito a locais que eu já conhecia. Tinha mais facilidade. Na periferia você é mais acolhido pelas pessoas, é muito bem recebido. Era um local em que realmente me sentia em casa, apesar das pautas violentas, de crime e de homicídio que recebia no começo”.

O trabalho no Diário do Nordeste serviu como base para iniciar sua trajetória no O Povo. Mesmo trabalhando com diversos estilos de pautas no portal O Povo Online por dois anos, Jéssika foi orientada a voltar sua atenção às temáticas de segurança pública. Logo depois, voltou ao Diário, agora como estagiária remunerada, e, após cerca de um ano e meio, começou a prestar serviços para a editoria de Cidades. Em seguida, retornou ao jornal O Povo como repórter de Segurança Pública, e lá permanece até hoje.

Ao consolidar uma história dentro do jornalismo policial, Jéssika demonstra orgulho de atuar na área, mesmo que ainda exista certo tipo de preconceito com esses profissionais: “Tem muito repórter policial que não gosta de ser chamado como tal, gosta apenas de ser chamado como ‘repórter da área de segurança pública’, mas não tenho problemas. Acredito que se instaurou um rótulo no repórter policial muito ruim, que é o de um repórter sensacionalista, aquele que está sempre atrás de desgraça”.

Parceiros de trabalho no Diário do Nordeste, fotógrafo Cid Barbosa e Jéssika Sisnando (Foto: Arquivo Pessoal)

Ela ainda constata que o sensacionalismo propagado pelos programas policialescos locais não é o tipo de jornalismo policial que ela vê em sua rotina de trabalho: “atuo com outros repórteres da área, e eles têm uma sensibilidade grande ao tratar o texto. E hoje, já se trabalha muito mais conteúdos especiais de segurança pública. A gente faz matéria sobre questões mais delicadas, como problemas no sistema socioeducativo, problemas dentro das comunidades. A gente entra muito na questão das facções criminosas”.

Sisnando acredita também que o grande diferencial do seu fazer jornalístico está em aguçar o olhar para outras vertentes, além do fato cru de alguma ocorrência policial ou acidente. “Quando a gente volta de uma pauta dentro de uma comunidade, a gente não traz só o caso do suspeito que levou tantos tiros, por exemplo. A gente volta à Redação com a história daquela pessoa, quem era ela, de onde veio. Conta histórias, traz histórias de vida, muitas vezes tristes, mas também histórias como a da Chacina do Curió, que foi desmembrada em várias abordagens”.

Para definir o autêntico trabalho de um repórter policial, em vez de especificar ou delimitar, ela expande, vai além e lança novas perspectivas.  “O repórter policial é um dos poucos que entram nas comunidades e descobrem uma série de problemas por lá. Não é só tratar apenas a violência daquele lugar. Na segurança pública, a gente tem uma série de fatores que torna a área mais abrangente, como abordar a falta de saneamento básico, de saúde, de educação”.

E, por ampliar essa definição, ela considera que o perfil de um repórter policial deve ser o de alguém que esteja preparado para as mais diversas e adversas situações. “Você terá um dia tranquilo, em que vai poder trabalhar um material especial, com ‘n’ fatores, com números e estatísticas, com especialistas. Também haverá dias que você vai ao presídio enfrentar uma rebelião, um motim, bala de borracha, bala de verdade, gás lacrimogêneo, incêndio; assim como dias de velório ou ocasiões mais amenas. O importante é saber que você sempre entra na vida das pessoas no momento mais crucial”.

Ela diz que, uma vez, “fui entrevistar uma senhora em Jaguaruana, para cobrir um ataque a banco e, por causa desse atentado, uma bala de fuzil atravessou a televisão dela. Quando cheguei, conversei com ela, que era uma senhorinha bem idosa mesmo. E ela falou: ‘foi um prazer lhe conhecer, pena que foi em um momento tão ruim’. E daí eu falei: ‘realmente eu só chego nesses momentos’. Isso é uma coisa que a gente tem que aprender a lidar. O repórter policial tem que ser uma pessoa sensível, pensar no outro, pensar nas pessoas que compõem aquela matéria, não só para ter um bom destaque  com o texto. É preciso pensar que as famílias das vítimas vão ler sua matéria. Tem que ter uma delicadeza, como os casos de investigação policial, por exemplo, que trazem um leque de opções. Eles (criminosos) vasculham a vida da pessoa toda e a gente tem que ter esse cuidado pra não expor muito a vida da pessoa que já está morta. O que menos ela precisa no momento é ter a vida toda exposta, inclusive se ela fez algo considerado moralmente errado, principalmente quando é um caso passional”.

O trabalho em equipe também foi um dos pontos destacados pela jornalista. Manter uma relação saudável com fotógrafo, cinegrafista e motorista faz a diferença. “No caso do impresso, a parceria entre repórter e fotógrafo é essencial. Você precisa conversar com ele sobre as imagens que vão compor sua matéria. Se for pra algum lugar perigoso, é preciso informar ao motorista pra deixar o carro em posição de fuga. Em relação à TV, é do mesmo jeito: repórter e cinegrafista precisam ter essa sintonia, essa articulação”. E adverte: “tem que ser preparado. Se for para a área policial, tem que gostar, é uma área muito ‘puxada’, é exaustiva não só fisicamente como mentalmente. Você vê muita coisa feia no decorrer das suas pautas e, por isso, é preciso manter o equilíbrio emocional”.

Como alguém que não alimenta receio nenhum sobre o que fala, quando questionada sobre quais limites éticos que um jornalista do ramo deve ter para não cair no sensacionalismo, foi enfática e categórica. “Não é preciso mostrar o rosto de nenhum suspeito e de nenhuma vítima. O bom jornalista de polícia ouve pessoas, inclusive testemunhas, sem precisar identificar. Se depois o suspeito for julgado como inocente, tanto o jornal como o jornalista que expuseram a imagem dele poderão responder um processo. É imprescindível ouvir tanto a pessoa que cometeu o crime, como a polícia e também as testemunhas. Sempre ouvir os dois lados, no mínimo. Quanto mais versões e “lados” da história ouvirmos é melhor, apesar de nem sempre o tempo permitir, porque num dia você pode ter de três a quatro pautas e nem sempre vai ser possível. Mas a regra é: quanto mais fontes, melhor”.

O expediente de Sisnando começa à tarde na Redação, mas é por meio do aplicativo WhatsApp que ela fica conectada integralmente a todos os acontecimentos da cidade. Não existe hora para receber uma mensagem sobre alguma ocorrência. “Eu acompanho grupos de policiais, de bairros. Tenho as minhas fontes que falam pelo aplicativo, e eu fico acompanhando as situações no decorrer do dia”. Quando acontece algo relevante, existe o que ela chama de “análise de profundidade”: “é preciso aprofundar os fatos. Mesmo quando não estou trabalhando, acompanho o que está acontecendo, e quando chego à Redação, eu informo ao editor o que está ocorrendo na capital. Ele me diz qual o foco, o que é importante de ir atrás, e eu vou. Quando tem que sair, eu vou pra rua. Quando tem que fazer matéria na Redação, eu faço também. A gente cobre de tudo: de operação, de julgamento, de delegacia, de coletiva de imprensa. É um trabalho que requer fazer de tudo”.

Entre as grandes coberturas que reportou no jornal O Povo, como os casos da menina Rakelly, do Subtenente Francileudo, das chacinas de Messejana e rebeliões nas unidades prisionais, ela consegue citar a que mais a comoveu como pessoa e mãe. “Eu fui reportar um homicídio. Era um ex-traficante que tinha sido executado em Maracanaú. Ele tinha saído do tráfico há mais ou menos cinco anos, tinha constituído família. O filhinho dele, com mais ou menos cinco anos, estava lá no local, assim como sua família. E eu cheguei para fazer a matéria e fiquei observando muito a família. A mãe dizia repetidamente para o filho: ‘olha, agora você é o homem da casa, agora só tenho você’. Fiquei pensando mil coisas, chorei, fiquei mal, porque, queira ou não, você acaba se envolvendo bastante nessas situações. Eu, como mãe de uma menina ainda criança, fiquei pensando em como seria o futuro daquele menino em meio a essa guerra do tráfico aqui no Ceará”.

São muitos os desafios do exercício de apurar com empatia e delicadeza as ocorrências policiais diárias. E, para tornar mais seguro seu ofício, a repórter acentua o cuidado que o profissional deve ter com a segurança pessoal e da família. Por haver um contato mais próximo – tanto com os setores mais frágeis da sociedade, a população pobre e os policiais, como com o alto escalão, os políticos e autoridades da segurança pública -, é necessário se prevenir. “Tento não expor onde moro. Tenho filha, e quando ela bate foto na escola, borro o nome da instituição. Não publico fotos que identifiquem a entrada da minha casa. Tomo cuidado quando chego e quando saio de casa”.

Ela encerra enfatizando a obrigação do repórter policial estar munido e treinado também para ocasiões que vão desde perseguições nas redes sociais, até ameaças face a face por presos em delegacias, e relembra algumas de suas vivências desagradáveis. “Ainda estagiária, eu tinha feito uma matéria de um cara que tinha tentado matar uma mulher. Assinei essa matéria, e ele me adicionou no Facebook. E como era inexperiente, meu perfil era público, então esse cara pegou a maioria das minhas fotos. Meu chefe ficou preocupado de acontecer algo comigo e retirou a matéria do ar”.

Por trás da voz cautelosa, existe uma firmeza de ação e postura, aprimoradas pelos sete anos de convívio com a aspereza das consequências do jornalismo policial. Jéssika Sisnando é referência para novos e velhos. É exemplo de repórter que desbrava as intempéries dessa Fortaleza, porque o amor e orgulho à profissão falam mais alto.

 

Texto: Iury Medeiros (6º semestre – Jornalismo)

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