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PRIMEIRA PAUTA: Dar-te-ei, finalmente, os beijos meus

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Crônicas, Uni7 Informa

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Enquanto as ruas tomam cores, formas e cheiros, eu ainda me contento em observar o movimento pelo olho mágico do meu portão. E através dele observo meu vizinho da frente. O pequeno Rafa, vestido de super-homem, não demonstrava a motivação que sua fantasia sugeria. O garoto, dono de um sorriso tão contagiante, apresentava hoje um semblante choroso. Sentado na calçada da sua casa, com o olhar fixo e esperançoso para a parada de ônibus, Rafael esperava.

Enquanto o observava, me perdi em lembranças enlutadas. Clarice, quem eu carinhosamente chamava de “Clara”, era enfermeira, mãe solteira, tinha toda dedicação e carinho por seus pacientes e um amor incondicional por seu filho Rafael. Quando a pandemia da Covid-19 fez suas primeiras vítimas, se entregou de corpo e alma ao seu ofício. O IJF de Fortaleza não salvaria tantas vidas se não fosse pela coragem de Clara.

Pelo olho mágico do portão me vem a história de Clara e Rafa

Para não pôr seu filho em risco, Clara deixou Rafa com sua mãe e me fez prometer, de dedinho, que leria para Rafael todas as cartas que ela enviasse.

Quando o plano de reabertura começou, em suas cartas Clara parecia muito otimista e, com palavras doces, explicava a Rafa que era uma super heroína e não podia estar com ele porque tinha vidas para salvar. Mas as coisas pioraram, os shoppings abriram e as pessoas lotaram as lojas, enquanto o Centro da cidade registrava multidões. Não demorou para os hospitais lotarem de novo. Em seu último telefonema, Clara disse entre tosses que não poderia estar presente no aniversário de Rafa, mas pediu que eu entregasse a bicicleta que ela havia comprado.

Entreguei a bicicleta a Rafa, e ele chorou, pois sua mãe não estaria ali para lhe ensinar a andar. E perguntou entre lágrimas:

  • Por que salvar vidas é mais importante do que voltar pra casa?

Hoje ele devia estar, finalmente, ganhando os tantos beijos e abraços que sua mãe lhe prometeu. Mas ele tá ali, na calçada, vestido de super-herói pra homenagear sua mãe, que não retornaria.

Havia ainda duas cartas que chegaram após a morte de Clara. Somente hoje tomei coragem para abri-las. As duas eram para mim. Na primeira, ela me convida para ser madrinha de Rafael. A segunda era um pedido: queria que eu ensinasse seu filho a andar de bicicleta.

Como assinatura, ao invés do seu nome, tinha uma frase:

“Quero realizar ao menos o primeiro sonho do meu filho”

Assumi meu papel de madrinha e expliquei a Rafa que, para salvar vidas, existe um preço, mas que todas aquelas pessoas só estavam se encontrando agora graças à sua mãe e a muitos outros médicos e enfermeiros que nem ela.

Não consegui evitar a dor de uma criança órfã.

Mas, duas semanas depois, ele já estava pronto para aprender a andar de bicicleta com sua capa de super herói.

Título tirado de trecho da música “Dar-te-ei” do cantor Marcelo Jeneci.

Texto: Keyss Morais (3º semestre – Jornalismo/UNI7)

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