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PRIMEIRA PAUTA: 1918 a 2020: de pai para filha

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Crônicas, Uni7 Informa

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Vejo com a distância de quinze fileiras de telhas, distribuídas na vermelhidão de meu alpendre, Ana Lúcia, mulher de olhos claros e cabelos negros, tingida pela mão de um artista que abusava da melanina, escritora de sua própria história há 48 anos e proprietária de seu coração amargo e piedoso. Da história que escreve, também faço parte. Vizinha e amiga de longa data, Ana e eu já vivemos efemeridades incontestáveis de seu real significado para a vida.   

Há pouco, nos deparamos com uma sentença, a prisão em nosso próprio lar. Ana estava desolada. Sempre foi uma mulher livre, desapegada dos padrões e alvo das normalidades erguidas pela vizinhança. Porém, mais uma vez engaiolada, tinha deixado as rédeas de sua vida para a margem mais próxima de seu alcance, pois dessa vez não estava à deriva de comandos e posições; ela podia estar onde queria estar.

Aos 26 anos, essa bela mulher da qual lhes falo, teve seu matrimônio. Em um primeiro momento, preocupou-se com o véu e a igreja; em um segundo momento, estava aflita com as vestes que cobririam as marcas e o hospital que não levantasse suspeita. Após anos sendo açoitada pelo peso de seus pensamentos, Ana enxergou a própria realidade e fugiu do que um dia foi um sonho. Hoje, formada em engenharia civil, desvinculou-se das construções pessoais, desfruta da solitude alcançada e mantém distância de qualquer homem com o cérebro nas calças.

Apenas um homem lhe causava tremores, podia frear sua circulação sanguínea e até dilatar a menor parte de seu globo ocular. Este homem era Rodrigo César, seu pai, com 103 anos de idade, que há muito ela não via.

Caminho pelo qual vivi e distante observo

Todos dias, Ana e eu nos falamos por essa mesma brecha, a diferença está quando a janela é do outro lado do muro. Ela sofre com a crise de meia idade e, submetida a 87 metros quadrados e paredes coloridas, já não suporta estar distante da liberdade que o mundo para além do portão oferece. Nunca cansa de dizer que mesmo com minha ajuda, só há alguém que pode acalmá-la, seu pai. Já se passaram meses e Ana estava impedida de visitá-lo; era muito claro para ela a saúde de seu pai em meio a uma pandemia.

Com 103 anos, o senhor César sabe muito bem do que se trata o momento pelo qual passamos. Ele estava presente quando a gripe espanhola afetou seus familiares e amigos, como nos conta sempre que íamos vê-lo. Já aos quatro anos de idade teve que lidar com a morte e a angústia  de muitos por perto. A todo momento o sino da igreja tocava em anúncio da morte dos afetados, e os velórios eram constantes. A fome era tamanha que, ao invés de andar, conseguia somente engatinhar, e por muito tempo ficou acamado, sendo tratado apenas com folhas de eucalipto. E sempre ao fim de seus relatos, ele dava graças à vida que possuía.

Após a reclusão de nossos desejos e apreensão de nossa rotina, Ana irá visitar o seu pai, e não vê a hora de bendizer sua vida.

Texto e foto: Victor Marinho (1º semestre – Jornalismo/UNI7)

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