PERFIL: A vida do engraxate escritor em histórias com letras e graxas
Denilson é figura emblemática no Fórum Autran Nunes. Ele é lembrado e requisitado não só pelos serviços que oferece aos advogados do órgão. Vai além! É admirado pelo dom que carrega desde menino
“Graxa de sapato com literatura, combinam?”
Denilson dos Santos, 48, engraxate “com carteira de trabalho assinada”, nasceu em Fortaleza e mora no bairro Conjunto Esperança. Limpou as mãos sujas de graxa, como se estivesse a falar algo que precisasse de certa formalidade e pompa e, entre as paredes acinzentadas do Fórum Autran Nunes, respondeu com um gesto preciso:
– Faço com que elas combinem!
Pouco depois, sentado em um pequeno banco de madeira, retornou às graxas e afirmou que o Denilson que escreve, não é o mesmo que chega às 8 horas da manhã ao trabalho, para dar brilho aos sapatos dos advogados. “Sou um sonhador. As coisas estavam um pouco fracas e aí apareceu essa oportunidade para trabalhar aqui no Fórum Autran Nunes”.
Além da graxa, dos sapatos sujos que repousam sobre suas mãos e dos materiais de ofício, o engraxate escritor também conta com a companhia de seus livros, guardados dentro de uma mochila que faz questão de manter por perto, como se preservasse ali dentro, verdadeiros tesouros. “Quando ia para o colégio, a minha bolsa tinha oito, dez livros. Levava todos para casa. Minha vontade era ler, sempre foi na verdade”.
Certa vez, ao ser flagrado lendo no horário de almoço por um de seus clientes, o advogado Carlos Vasconcelos, 55, Denilson parecia atônito, ansioso e inquieto. “Comecei a observá-lo, porque notei um comportamento estranho”, recorda o advogado. “Ele mexia na bolsa com tanta ferocidade como se estivesse à procura de algo muito importante. Fiquei preocupado e me aproximei. Quando perguntei o que acontecia, ele parou, olhou pra mim com um olhar de criança chorona (risos) e soltou: ‘Meu livro, meu livro velho, o da sorte, que sempre leio e releio sem cansar e sempre guardo aqui na bolsa. Não está mais aqui.” Denilson havia perdido seu “livro de estimação”. “Eu fiquei sem reação, nunca ousei em retirar o livro do lugar que sempre guardo e aquele dia foi muito ruim”, desabafa. Aquele episódio parece não ter cicatrizado até hoje.
“Já há mais de dez anos que e escrevo. Tenho quatro livros escritos” – Denilson dos Santos
Quando criança, Denilson gostava de ir à escola e, uma vez ou outra. o pequeno fugitivo das salas de aulas era encontrado em meio às estantes da biblioteca. Depois dizia: “A aula estava chata! Não dava pra ficar ali”, e lamentava tardiamente quando se deparava com uma nota baixa. Caminho Suave. Esse era o título do livro preferido do pequeno leitor que, desde criança, despertou interesse para assuntos relacionados às questões socioambientais.
O menino, que lia a 69ª edição, na época, da cartilha de autoria da escritora Branca Alves de Lima, cresceu e não transformou em desinteresse os gostos e sonhos da infância. “As crianças de hoje serão os adultos de amanhã. Se elas desde pequenas, colocarem na mente essa questão de defender o nosso meio ambiente, nós vamos ter a possibilidade de um futuro melhor”.
Contraditoriamente, Denilson abandonou os estudos. As notas baixas e o regime severo do Colégio Militar de Fortaleza desestimularam o engraxate, que não passou do ensino fundamental. “Não queria nada na época”. Porém, o precioso valor que dava aos livros, o prazer por temas ambientais, por coletar dados em livros e jornais, ajudaram-no a desenvolver a habilidade da escrita.
O garoto desinteressado por assuntos letivos cresceu, constituiu família, virou pai de duas meninas e assumiu a profissão de engraxate no Fórum Autran Nunes, localizado na Avenida Tristão Gonçalves, no Centro de Fortaleza. Não há ali qualquer advogado que não o conheça ou esteja ciente dos sonhos de Denilson. “Ele virou uma figura emblemática do Fórum. Quando não o vejo por aqui, já estranho o lugar e até me confundo, acreditando que eu possa estar em outro órgão”, alega o advogado Osmar Lucena, 58. Enraizada, a paixão por ler e escrever fez com que Denilson, durante anos, escrevesse quatro livros. “Já há mais de dez anos que escrevo. Tenho quatro livros escritos. A dificuldade é tremenda, mas creio que as portas vão se abrir, porque meu sonho é ver meus livros publicados”.
“Ele virou uma figura emblemática do Fórum. Quando não o vejo por aqui, já estranho o lugar” – Osmar Lucena, advogado
2007 foi o ano que Denilson criou sua primeira história, o livro “Solitário – O pintinho diferente”, que aborda o preconceito. E depois, surgiram “Terra dos Gigantes”, que relata o desmatamento na Amazônia, a necessidade de preservar o meio ambiente e as peculiaridades da cultura indígena; e o “Gato que pensava ser um leão”, uma coletânea de contos. As conversas durante os intervalos de audiência, acentuaram a admiração do advogado Osmar Lucena pelo engraxate. Ambos se conheceram há cerca de três anos, o mesmo período de tempo que Denilson começou a trabalhar como engraxate no Fórum. “Ele é assim devotado e comprometido com as questões sociais. É um trabalho de relevância mesmo”, corrobora.
Seu último “investimento” foi o livro infanto-juvenil “A Invasão”, que conta uma fantasiosa história sobre a chegada de mosquitos ETs aqui ao Brasil. “Na primeira parte do livro, não é revelado que os egytptorianos são, na realidade, os mosquitos da dengue. Somente na segunda metade, depois que termina toda essa parte lúdica do suspense, é que entro com a realidade da história, contando que os invasores egyptorianos são os aedes egypty que vieram lá do outro continente, do Egito, atormentar nossa vida aqui”.
“Na época em que ele estava escrevendo “A Invasão”, sempre o vi encostado no cantinho e ele escrevia sem consultar nada e fui perguntar por curiosidade: – Denilson, você é escritor? E ele disse: – Sim, sou escritor. – Cara, que beleza. Então você é um talento, porque escrever desse jeito não é todo mundo que faz não”, testemunha o advogado Carlos Vasconcelos.
Denilson, aos 48 anos, busca, contudo, tornar menos graxas e mais letras seu mundo. Visualiza voos que ultrapassem e sobrevoem os sapatos brilhantes dos advogados e prepara suas asas em processo de divulgação e publicação da sua última obra.
Querer, sonhar e conseguir! Um clichê tão autêntico quanto as histórias escritas por Denilson. Dias depois de terminar as últimas linhas desta história, recebi uma ligação dele. Parecia emocionado, em êxtase! A respiração ofegante denunciava o anúncio de algo importante. Do outro lado, esperava em silêncio. Quando ele grita: “Meu livro será publicado! Os advogados do Fórum e o pessoal da minha igreja se reuniram e juntaram uma quantia pra eu ver meu sonho virar realidade”. Sorri! E imediatamente o parabenizei. Quinze dias depois, no dia 28 de setembro de 2017, Denilson realizou, no Fórum Autran Nunes, o lançamento do livro “A Invasão”.
Este, com certeza, foi o primeiro sopro para o engraxate escritor voar para longe, onde sequer as graxas alcancem as mãos que serão exclusivas de suas histórias.
TEXTO: Iury Medeiros (7º semestre – Jornalismo/UNI7)
FOTOS: Iury Medeiros e Amanda Cavalcanti (7º semestre – Jornalismo/UNI7)