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CONTO: Diário de um garoto e seu leão

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Mais uma vez estamos nessa praça para matar o longo tempo que nos resta, leãozinho. Eu sei que deveria estar em aula… Sim, também sei que se me descobrirem aqui estarei ferrado… Mas, quem vai me descobrir? Eu não vou falar e você é um leão de pelúcia, também não vai conseguir me dedurar. Agora para de tentar me dar lição de moral e vamos aproveitar o resto de tarde que a gente tem.

É engraçado como as coisas nunca mudam nessa praça, pelo menos desde que começamos a vir para cá, tudo continua igual. Segue uma constância. Parece que a luta é para as coisas continuarem iguais. Sentados sempre nesse banco de cimento, que fica embaixo da sombra de uma mangueira e por isso sempre está fresco, nesse finalzinho da manhã. As pessoas que passam nos olham com estranheza, pois eu, teoricamente, deveria estar na escola. Sim, claro, bem lembrado.

A velhinha que fica dando comida aos pombos parece que também está inclusa na mesma rotina da praça. A grama daqui, sempre verde, algumas vezes com mais folhas caídas das árvores, outras com menos. Mas, as pessoas não conseguem reparar nisso, Leãozinho. É, deve ser isso mesmo. Elas estão sempre mais ocupadas com o que está logo adiante e acabam não olhando o que está acontecendo agora. Até aqueles que reparam em nós, rapidamente se voltam à sua programação e seguem seus rumos, em busca da próxima coisa que se tenha para fazer. O sossego parece incomodar.

Sabe de uma coisa, leãozinho? Acho até que ter problemas com os meninos da minha sala foi uma coisa boa. Como assim? Será que você não consegue perceber? Se os meninos não implicassem constantemente comigo, se eu não tivesse brigado com um deles, se depois eles não tivessem me cercado e me ameaçado de me espancar se fosse para aula novamente ou até se contasse para os meus pais, nós nunca estaríamos participando dessa rotina maravilhosa da praça. Sabe, aqui eu me sinto bem. Sinto que talvez possa ser o meu lugar. É, você está certo, não havia pensando como seria morar na praça em dias de chuva. Mas, com certeza, deve ser melhor do que a escola ou a minha casa. Vamos continuar planejando isso, talvez com mais discussões a gente possa chegar a um consenso.

Caraca, Leãozinho! Ainda bem que você me lembrou. Olha a hora! Já está quase na hora de ir para casa. Se passasse mais tempo aqui, com certeza meus pais começariam a desconfiar. Sim, acho que não é tanta certeza assim, já que as ligações do colégio lá para casa para entender o que aconteceu comigo ou por que não são suficientes para eles começarem a desconfiar. Nem ao menos atender essas ligações eles conseguem. Estão muito ocupados com eles mesmos. Acho que posso relaxar mais. Por alguns instantes esses pensamentos me deixaram tenso.

Quase chegando a casa. Sem as árvores da praça fica mais fácil de reparar como o dia está quente. Haha! Muito boa mesmo. Não é porque você não está suando que não significa que o dia não está quente. Vou ter que tomar banho dessa vez, estou realmente suado e fedendo. Não, não estou sempre assim. Você hoje está o rei das piadas. Não sei como faço para comprar seu ingresso do show de humor, mas continue assim que esquento só o meu almoço e não esquento o seu. Você acha mesmo que a minha mãe já vai ter deixado o almoço pronto, antes de ter saído para o trabalho? Leãozinho, não alimente falsas esperanças. Isso aconteceu pouquíssimas vezes, não vai acontecer hoje. Você está em minhas mãos, MUAHAHA. Sim, isso foi uma risada maléfica. Ok, posso não fazer tão bem, mas continuar me criticando não melhora sua situação.

– Mãããe?! Alguém em casa?

Odeio quando falo isso e tem esse eco aqui em casa. Parece que os corredores e as salas ficam mais vazios. É nesses momentos que agradeço muito a sua companhia, Leãozinho. É, acho que depois dessa minha declaração você merece sim o almoço. Mas, dessa vez, tenta comer. Todas as vezes que esquento nosso almoço só eu que como. Você fica olhando para o prato, como se fosse um boneco. Não precisa repetir. Sei que é um boneco, mas você entendeu o que quis dizer, então trata de comer quando eu colocar. A minha mãe já vem muito estressada com meu pai e o Cleber, lá do trabalho. Ela não precisa de mais um motivo para se estressar com alguém, muito menos comigo.

Sempre que tento acender esse fogão, tenho que aguentar esse seu olhar de medo com preocupação. Consigo até imaginar suas sobrancelhas de pelúcia subirem a cada movimento que faço pra acender o fogo. Eu sei que já tive queimaduras. Você acha que ficar me lembrando, vai fazer de ti o sabichão? Eu tive que aprender e o “aprender” me deixou algumas marcas. É assim que funciona. Se não tivesse essas marcas, repetiria os erros. E, sim, isso vale para todas as marcas. Tanto para não repetir os erros ou então para não deixar que os outros os descubram. Você tem muito para aprender comigo, leãozinho. Esses anos todos, desde que começou a falar, ainda não foram suficientes para você ser um cara experiente como eu. Mas, talvez, com muito esforço, você um dia consiga ser um homem de 9 anos.

Eles, finalmente, estão perto de chegar. Da para ouvir o barulho do carro estacionando na garagem. A hora voa quando a gente vê TV. Tenho que ser menos distraído do que a minha dupla, já que ela fica mais ligada nos desenhos do que eu. Vamos, depois a gente continua essa discussão. Agora a gente tem que correr e se ajeitar para dormir o mais rápido possível. Eu arrumo a cama e nos ajeito para dormir. Você fica parado e observa se eles estão vindo para o quarto. Não se acostuma com essa função não. Em algum momento a gente vai trocar e você vai ficar com o serviço pesado de arrumar o quarto e a gente. Não adianta vir com essa desculpa de que seus instintos de leão são mais hábeis para saber se eles estão chegando.

Começou a gritaria. Você consegue entender porque estão brigando novamente? Ah, sério? Por conta do Cleber, de novo? Meu pai está reclamando que a mãe só fala dele e ela está reclamando que o pai não está escutando ela de novo, é isso? Não, leãozinho, não precisa ter a audição de um leão para deduzir o que eles estão brigando. Não que eu não tenha uma audição tão boa quanto à sua. É só que fica fácil quando não é a primeira vez, e pela minha experiência, não será a última.

Lá vem ela pro meu quarto ver se estou dormindo. Vê se finge bem dessa vez, e nada de ronco falso. Pronto, ela olhou, me deu o beijo de boa noite e já voltou a chorar novamente. Agora é só esperar a vez do meu pai vir. Ele vem depois de beber mais um pouco e aí, finalmente, estaremos livres, leãozinho.

Agora que acabaram nossas obrigações, chegou a hora de dormir. Ah! Antes que esqueça! Em caso de pesadelo está autorizado o acordo nacional Abraçar e Apertar o Outro até Passar o Medo, mais conhecido como AAOPM. Claro que existe! Esse acordo foi feito em 1970, quando o menino precisou do auxílio do seu melhor amigo e eles descobriram que esse era o melhor jeito de ajudar alguém. Você está rindo só porque não sonha. Mas, se isso um dia acontecer, leãozinho, quem vai rir sou eu.

Ok, vamos dormir. Já chega dessa conversa sem sentido. E chega do riso sobre ela também. E leãozinho, obrigado por hoje. Se não fosse a sua companhia, preocupação ou até o cumprimento do AAOPM, não sei como seriam meus dias. Gosto tanto de você, leãozinho. Espero que você aproveite o descanso. Amanhã teremos mais das velhas aventuras. Preciso do meu companheiro preparado.
Boa noite, leãozinho.

Autor: Horácio Neto (5º semestre – Jornalismo/UNI7)

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