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Anônimo

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Crônicas

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Certa vez, em um de seus trabalhos, ele se perguntou o motivo daquilo. Queria saber por qual razão isso acontecia. Mas nada plausível lhe vinha à cabeça. Ali, olhando para sua mesa, sua caneca, com uma grande mácula negra no fundo das tantas doses de café, o cinzeiro ao lado, com baseados tragados, esperando pelo que estava entre seus lábios, ele entrou na maior tensão de sua vida. A máquina lhe sorria, o branco do papel era a sua mente: vasta. Ampla, aberta a quaisquer possibilidades. Mas ele não sabia discernir uma coisa de outra. Seria o branco do nada, ou o branco do tudo? Simplesmente, naquele momento de bloqueio, era o branco do nada. Eu não sou eu, eu já não me reconheço. Pensava ele. Sou anônimo. Anônimo, anônimo…  Sou mortal, mas eles… eles são imortais.

Ele saiu do quarto, coisa que achou estranho, pois passara a considerá-lo seu refúgio. Sua estante no canto do quarto era o suporte para seus diversos tipos de refúgio, seus livros. Suas obras originais, obras de seus exemplos. Nossa, como pode? Como eles conseguiram passar por isso? Queria eu saber como eles adquiriam essa proeza de se eternizarem em minha mente e coração. Queria eu ser eternizado nas mentes e corações dos ignorantes, dos sábios… de todos. Queria eu ter essa dádiva. Esse amor, essa dedicação, essa vontade. Queria eu que os outros não fossem preconceituosos. Queria eu uma oportunidade de me mostrar ao mundo.

Na sala, nada havia apenas algumas fotos em cima de mesa. Pegou-as, sua mulher as deixara ali desde quando partira, e sentou no chão mesmo. O sofá estava repleto de furos, bichinhos e cheirando a mofo. As fotos eram de tempos de namoro. De quando não pensava no dia de amanhã, apenas no presente. Algo passou correndo ao seu lado. Ele pegou. Era uma ratazana do tamanho de um punho fechado. Ele a trouxe para junto de si, fez-lhe um afago na cabeça, e mostrou-lhe a foto. Não acha ela linda? O rato guinchou, mordeu-lhe o polegar, mas não conseguir se livrar. Ele pegou outra foto. Sua mulher sorria, dissimulada. Capitu Pádua. Ele atrás dela, fumando. Bento Santiago. Outra, de quando eram crianças. Ela, com uma caixinha amarela em mãos. Virginia. Ele, com uma aranha de brinquedo. Daniel.

Desgraçada. Mulher vil, vadia, interesseira cujos olhos estão voltados à estética viril, a estética banal. Mas, não voltados à verdadeira estética, aquela que ele via, lia e ouvia. Aquela estética que ele tentava produzir. Não sou uma cópia, não sou uma sombra! Esse não sou eu. Eu… sou apenas…eu. O rato em sua mão livrou-se, em fim. Mas ele jogou-se ao seu encalço. Agarrou-o, esmagou lhe a cabeça entre os dentes. O sangue do roedor escorreu entre seus dedos, lambuzou o chão, mas ele não se importou. Comeu-o. Depois de devorar o roedor, se permitiu a um copo de café. Fumou três cigarros. Os últimos restantes. Chegou para as fotos e as levou para o quintal. Ali, atiçou fogo nelas. Depois saiu, caminhou pelas ruas, via criaturas correndo pelas calçadas; meninos, meninas, cães, gatos e uma potranca jovem. Foi até um bar, pediu um novo maço e uma garrafa de vodca. Embebedou-se e bronzeou os pulmões. Adormeceu na bancada, acordou com o taverneiro brandindo furiosamente, enxotando-o para fora de seu bar. Ele, bêbado, indignado, soltou os mais vis palavrões, fez gestos obscenos e por fim mijou no pé do muro do bar. Voltou para casa, mas o que via? Nada. Apenas sentia. Sentia sono. Adormeceu como uma pedra e só foi acordar dois dias depois. Quando acordou, estava com umas baratas rastejando no peito. E sem pensar, pegou uma delas e a amassou na mão. Com a mente um pouco mais lúcida, percebera os quão ossudos seus braços e mãos estavam. Palpou o rosto. A pele era fina com papel, deslizando suavemente pelos ossos craniais, lisa. Com cuidado, puxou a casca de uma ferida no cotovelo. A princípio, doeu. Mas isso não o fez parar. Arrancou-a por completo. A ferida se abriu. Ele adorava aquela dor. Ela o fazia se sentir humano. O fazia se sentir vivo. Começou a se coçar, começou a falar sozinho. Começou a resmungar. Estes eram os primeiros sinais da loucura. Céus, Deus do Céu!

Mas ele ainda estava ciente de que estava à deriva da loucura. Que seja o que há de ser, ele disse. E emendou com: Que venha então rápido, pois estou morrendo à mingua. Agora passeava todos os dias pelas calçadas emendadas de lixo. Conhecia já os vira-latas, sabia até onde moravam. Embaixo de pontes, casas abandonadas e etc. Conhecia os mendigos, assimilava-se cada vez mais a eles. Sua aparência a cada dia ficava mais grotesca, cadavérica. O cigarro e a bebida sugavam-lhe a vitalidade. Sugavam-lhe a vontade, a impetuosidade. Aquela autêntica, e mais verdadeira alegria de criação. Perdera as contas de quantas vezes fora dormir nas ruas. Acordou com os cães lambendo-lhe a face. Desjejuou com os restos do lixo, e passara a conversar consigo próprio com mais frequência. Não estou ficando louco coisa nenhuma! Estou conversando comigo mesmo, com a minha mente. Há companhia melhor? Convencido disso, sorriu pelo resto do dia. Não se importou com mais nada, a não ser seus piolhos. Ele passou a gostar da rua. Das pessoas. Perguntava-se, sempre quando via alguém caminhar, descer do ônibus, ir a lojas, o que estaria fazendo. Qual seria a sua vida? Suas dificuldades, seus medos, suas paixões. O que as teria levado a sair de casa? A vida passava ao redor dele, ele era um mero espectador. Já presenciara brigas no meio da rua. Espancamentos, perseguições, tiroteio e protestos. Todos que o viam ali, deram-lhe um apelido. Também começavam a indagar-se: Quem será ele? O que o fez sair de sua própria casa? Coitado, ninguém o deve amar neste mundo. Mundo cruel, eles diziam. Ele vira a mudança acontecer. A mudança neles acontecer. E eles viam nele a mudança acontecer. Subitamente, numa tarde de inverno, suas trevas foram clareadas. Aquela dúvida permeava em seu consciente, o resquício que ainda restava; como agulha no palheiro.

Foi nesse momento, nesse choque de ideias, todas borbulhando freneticamente por as cabeça, que ele tornou a sentir aquela sensação, que outrora não sentira. Antes tivera um questionamento que o impedira de realizar suas criações, agora outro questionamento que lhe ocorria o permitiu realizar suas criações novamente. Sentiu-se alegre por isso.

Sentiu-se vivo, impetuoso. Seu sangue fervilhava, as ideias e especulações ferviam. Como pudera passar tanto tempo à mingua? Seria, essa miséria toda, para este momento? Todo esse turbilhão de ideias e sensações não poderiam ficar consigo. Porque ele não as suportaria, porque era imperfeito. Então ele as poria tudo no papel. Correu de volta à sua casa. O quarto estava empoeirado. Espirrou algumas vezes, mas tirou, debaixo de uma camada grossa de volumes, sua máquina. Sua boa e velha máquina.

Sentou na escrivaninha. Posicionou-se, sua xícara estava vazia. Levantou e foi fazer café. Enquanto esperava o bule chiar, viu-se refletido no espelho da sala. Um velho espelho de sua antiga esposa. A barba grossa, por fazer. A sujeira impregnada em suas feições. Magro. Moreno. Nesse interim, ele lavou-se. Asseou-se de todas as impurezas. Colocou uma roupa, a mais limpa que tinha. Ouviu o chiar. O café estava pronto, amargo, como gostava. Deu uma longa tragada, e voltou a sua escrivaninha.

Tec, tec, tec. O som permeava-se através da enfadonha sala. Seus dedos mexiam-se, pra lá e pra cá. Pareciam cientes de seu dever. Seus pensamentos iam tomando forma, tomando vida, naquelas linhas. Nunca tomou tanto café na vida. As únicas vezes que saía do quarto, era quando ia ao banheiro mijar. Depois voltava ao trabalho. Não comia, não dormia. Suas mãos estavam sujas de tinta, os dedos doloridos de tanto apertar as teclas duras até o final. Suas ideias no papel eram grandes, ele as julgava. A pilha de folhas ia aumentando, tornando-se uma pequena torre. Ele escrevia, escrevia com convicção. Com ardor, com paixão. A cada letra, palavra, sílaba, oração, parágrafo e lauda completada, ele se completava. Atingia, aos poucos, o êxtase.

Não sentia o tempo passar. Não ficava cansado. Dia e noite, noite e dia, ele escreveu. Era o seu único propósito, não tinha outro. Quando terminou, foi difícil se convencer. Mas ao fazê-lo, deu um longo suspiro e recostou-se na cadeira. Extava exausto, mas nenhum homem no mundo poderia se igualar a ele naquele momento. Sua felicidade era imensa. Ele sorria, ria. Mas sua obra não estava acabada. Necessitava de um título. Esquecera também de pôr o seu nome. Quando se deu conta, era tarde.

Um último suspiro escapou de seus lábios ressecados.

Eles entraram com violência. Arrombaram a porta e invadiram. Os guardas seguiram na frente. Vasculharam por todos os lugares, quebraram e roubaram tudo. Fizeram uma boa “limpeza”. Um dos guardas foi até um dos aposentos. A casa era grande, a maior que já vira em vida. A pessoa que viveu lá, deveria ser rica. E o intrigou o fato de ter sido abandonada com tantas riquezas. Quem vivera ali? No aposento, o guarda encontrou uma escrivaninha e uma cadeira. Sentado nela, um cadáver. Na mesa, uma máquina.

O guarda tirou a folha que estava presa. O que estava escrito na última linha chamou sua atenção. Depois pegou a pilha no canto da mesa e começou a ler. Seus olhos gostaram do que aquelas frases diziam. Olhou para o cadáver, surpreso. Outro guarda, um mais ignorante, entrou na sala.

– O que está fazendo? – Ele perguntou.

O jovem guarda apenas meneou a cabeça.

Nem ele sabia o que estava sabendo. Levou o manuscrito consigo. Para ele, era algo mais valioso que qualquer objeto daquele lugar. Leu-o fervorosamente. Devorou, praticamente. Quando lhe perguntavam o que era que estava lendo, de quem era aquele manuscrito, este apenas respondia:

– Não sei, é anônimo.

 

Neyliana Maia

2º semestre – Jornalismo

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