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PERFIL: Olhar positivo sobre a vida e os traços de Celso Florêncio

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Entrevistas, Texto

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Formado em economia e pedagogia, hoje é artesão e cordelista. Foi no Instituto dos Cegos que teve seu primeiro contato com a produção de artesanato. Três anos depois, tornou-se o primeiro cego a expor suas peças no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura

Não era o meu primeiro encontro com aquele senhor. Ele já me cativara em outra conversa. Ao entrar na Sala de Artes do Instituto Hélio Góes, me apresentei à turma, que em meio à produção rotineira de artesanato, dialogava suas experiências e brincava com as próprias condições: deficientes visuais. Seu Celso, bem-humorado, foi logo comentando que do ônibus, enquanto estava no caminho, “viu” num muro a seguinte escrita:

“O sol contempla o dia
À noite, é a lua que comanda
Sobre o banhado das ondas do mar
Uma faceira jangada anda
E Deus mandou para mim
Esta rosa de nome Amanda”

De contentamento presente no peito e após o singelo presente, elaborado e memorizado por Celso Florêncio, fomos à biblioteca do Instituto dar início a essa história. A trajetória começa no Município de Redenção, onde, filho de pai pedreiro e mãe dona de casa, Celso Florêncio do Nascimento nasceu, no dia 28 de março de 1942.

Com o tempo, este amante da poesia aprendeu a ‘escutar o barulho do silêncio’ (Foto: Amanda Cavalcanti)

Questionado sobre sua infância, relembra a vivência em sítio, junto aos animais. Tangia jumentos no transporte de cachaça, capim e banana. Considerava aquilo o paraíso, sendo o único inconveniente, a hora de subir no animal, pois precisava encostá-lo na cerca, escalar o arame e, só aí, conseguia montar no jumento. Hoje, no entanto, aos 75 anos e cego, essa memória satisfaz a curiosidade quanto à sua altura naquela época, quando era apenas um menino de dez anos, que estava se mudando para Fortaleza.

O pai já morava na capital e, a cada quinze dias, ia à Redenção. Seu plano era trabalhar, juntar dinheiro e comprar uma casa, para que toda a família pudesse vir. Primeiro, foi um quartinho no Monte Castelo, que ainda passou por uma reforma de ampliação, depois se mudaram para uma casa próxima à Lagoa da Parangaba, esquina com a Rua Carneiro de Mendonça.

Em 1952, Celso Florêncio, os pais e seus quatro irmãos, passaram a residir oficialmente em Fortaleza. Nesse momento oportuno de nossa conversa, ele enfatiza que agora são apenas três irmãos, pois um deles faleceu há quatro anos, em um acidente de moto. Celso continua a me contar suas memórias, parecendo já ter superado a perda.

Dedicado nos estudos, relembra os nomes de suas primeiras professoras: Maria Joana e Graziela e também os diálogos com a mãe, expondo sua vontade de estudar no colégio do estado. “Eu dizia: Mãe, no outro ano, me deixa ir para aquela escola? Ela respondia que eu ia ficar na escola que ela quisesse. Nunca estudei em escola pública. Só depois que cresci, passei sete anos no Liceu do Ceará. Então, foi assim que aprendi a levar a vida com responsabilidade.”

Enquanto estudava para o vestibular, já trabalhava na Superintendência Municipal de Obras e Viação – SUMOV, quando adquiriu seu primeiro transporte: uma vespa. Após ter sofrido um acidente, resolveu que iria continuar os estudos em Redenção, na casa de uma tia.

Entre os cuidados auferidos, estava o de uma moça, que veio a ser a sua primeira esposa. “Uma coisa que tinha muito medo era de casar, porque achava que quando tirasse a mulher da casa do pai dela, tinha que dar uma vida melhor. E assim eu fiz: Quando casei, já tinha a casa, mandei gradear, fazer jardim e botar um poço profundo, arrumei toda!”.

Depois do casamento, ele e a esposa vieram morar na Barra do Ceará e, dessa união, nasceram cinco filhos: Marniele, Liliana, Nadja, Jordana e Ramirez. “Filho nasce, cria asas e vai embora. Ensinei como é que anda e mostrei os caminhos, agora eles têm liberdade para andar só”.

Apesar desse discurso, o casamento acabou após alguns anos. A companhia dos filhos, entretanto, ainda se faz presente. Começou a frequentar o Instituto dos Cegos a partir do incentivo da filha Jordana, que o levava todos os dias para a Instituição. Certo dia resolveu tentar ir sozinho e quando foi no domingo, falou com a filha:

– Jordana, coloca minha roupa na cama.
– Mas, o senhor não vai sozinho não, né?
– Tá ficando doida? Não tem perigo.

Quem acordava mais cedo todos os dias, porém, era ele. Então, nessa segunda-feira, acordou, vestiu-se e saiu sorrateiramente. O motorista do ônibus, que já o conhecia, parou e perguntou:

– Vai só hoje?
– Vou sim.

Enquanto o ônibus estava em movimento, sentia-se seguro, mas, ao descer e se deparar pela primeira vez sozinho nessa situação, temeu as ruas da cidade. Tirou a bengala devagarzinho, como quem não quer ser notado e ficou parado. O sinal tocou e uma voz disse: “Pode passar, o sinal está aberto.” Ele, um tanto sem jeito, disse que estava esperando um amigo. Mas, não era verdade. Só quando perguntaram se ele queria passar para o outro lado, disse que sim, conseguindo chegar ao Instituto.

Quando fala do ambiente em que se reencontrou após ficar totalmente cego, se enche de orgulho. Ele aprendeu o braile em um mês e meio e começou a frequentar as aulas de artesanato. Dessa aptidão, nasceram sessenta peças, entre elas, barco, igreja e roda gigante. Os artefatos foram parar em uma exposição no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, fazendo do seu Celso, o primeiro cego a expor ali. A mostra, que duraria apenas dois meses, acabou ficando por mais de dois anos.

2.Celso Florêncio na sala de artes do Instituto dos Cegos, onde teve seu primeiro contato com a produção de artesanato (Foto: Amanda Cavalcanti)

A propensão não ficou só no artesanato. Também no Instituto, começou a elaborar cordéis. O primeiro que fez, recorda com carinho: “Como sou muito otimista, não desisto dos meus sonhos e sou muito determinado. O título é Otimismo em Gotas”. Enquanto falava, puxou da sua bolsa alguns papéis e me presenteou com dois deles. Um livrinho de cordéis, em parceria com o SESC, sobre deficiência visual, escrito por ele, e o outro, um cordel produzido através da memória da saudade de seus livros e LPs, que junto às mudanças, acabaram sendo doados. Ao receber, li em voz alta:

“Páginas Molhadas
Queridos amigos de tanto tempo
Obrigado pela honrosa companhia
Vocês deixaram um vasto conhecimento
Envolvendo-me nas páginas do manual da sabedoria
Formavam uma adorável família, vivendo numa união constante
Todos ali, alegres e faceiros, pousando na passarela da minha estante
Quando chega a saudade de vocês, às vezes ainda choro, não nego
Deixei vocês totalmente abandonados, somente porque estou cego
Mas nem que seja em espírito, um dia voltarei e carinhosamente lhes pego
Paracuru, 18 de fevereiro, 2006. 6:45h”

Celso Florêncio ficou cego de um olho após uma bolada, quando tinha apenas vinte e oito anos de idade, mas comenta que não sentiu tanto por ter a outra visão boa. Mais velho, em uma ida ao médico. Em 2006, descobriu que estava com catarata. Passou por sete cirurgias, mas não teve jeito, estava cego. Não se desesperou, todavia. “Não me apavoro. Com os cordéis, por exemplo, se quero fazer uma sextilha, abaixo a cabeça, fico pensando e repito na mente, até formar seis. Quando chego a casa é que vou escrever. E assim fui me testando.”

Além da escrita, gosta de música. Entre os cantores preferidos estão Zé Ramalho, Alceu Valença e Guilherme Arantes. “Também gosto de ficar sozinho, escutando o barulho do silêncio, a sinfonia de uma folha seca sendo embalada pelo vento no calçamento. Gosto muito de poesia.”

Esse carinho era nítido. Seu Celso exala poesia. Após o clima sereno ouvindo suas histórias na biblioteca, o acompanhei até o refeitório para o almoço. Falante e animado, mal comeu, parecia estar com pressa. Fomos juntos até a parada de ônibus, onde percebendo sua curiosidade quanto a minha fisionomia, o deixei tocar o meu rosto em um breve ato. O ônibus chegou e ele subiu, hoje, já acostumado a ir e vir sozinho.

TEXTO E FOTOS: Amanda Cavalcanti (7º semestre – Jornalismo/UNI7)

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